sexta-feira, 11 de maio de 2012

Este pequeno texto do escritor/educador Pablo Gentili nos põe a pensar sobre como a exclusão social é reproduzida e reforçada em nosso dia a dia e sobre o quão tênue está nossa capacidade de indign(ação) diante dela! O que você leitor(a) acha disso? Se desejar deixe algum comentário para os(as) demais visitantes. Abraço. Carlitos.

UM SAPATO PERDIDO
(OU QUANDO OS OLHARES “SABEM” OLHAR)


“Naquela manhã, decidi sair com Mateo, meu pequeno filho, para fazer algumas compras. As necessidades familiares eram, como quase sempre, ecléticas: fraldas, disquetes, o último livro de Ana Miranda e algumas garrafas de vinho argentino, difíceis de encontrar no Rio de Janeiro por um bom preço. Depois de algumas quadras, Teo dormiu tranqüilamente em seu carrinho. Enquanto ele sonhava com alguma coisa provavelmente mágica, percebi que um de seus sapatos estava desamarrado e quase caindo. Decidi tirá-lo para evitar que, por um descuido, se perdesse. Poucos segundos depois, uma elegante senhora me alertou: “cuidado!, seu filho perdeu um sapatinho”.”Obrigado – respondi – mas fui eu mesmo que tirei”. Alguns metros à frente, o porteiro de um edifício, de sorriso tímido e poucas palavras, moveu sua cabeça em direção ao pé de Mateo, dizendo em um tom grave: “o sapato”. Levantei o polegar em sinal de agradecimento, e continuei meu caminho. Antes de chegar ao supermercado, dobrando a esquina da Avenida Nossa Senhora de Copacabana com a Rainha Elizabeth, um surfista igualmente preocupado com o destino do sapato de Teo disse: “ô, mané, teu filho perdeu a sandália”. Ergui o dedo novamente e sorri agradecendo, mas já sem tanto entusiasmo. No supermercado, as pessoas continuaram chamando minha atenção. A suposta perda do sapato de Mateo não deixava de gerar diferentes mostras de solidariedade e alerta. Chegando a nosso apartamento, João, o porteiro, orgulhando-se de sua habitual teatralidade, gritou despertando o menino: “Mateo! Seu pai perdeu o sapato outra vez”.
O sol tornava aquela manhã especialmente brilhante. A preocupação das pessoas com o paradeiro do sapato de meu filho, mesmo que insistentemente, dava-lhe um toque solidário que a tornava mais ainda alegre ou, pelo menos, fraternal. Contudo, estando a salvo dos chamados de atenção, comecei a ser invadido por uma estranha sensação de mal-estar.
O Rio de Janeiro é, como qualquer grande metrópole latino-americana, um território de profundos contrastes, onde o luxo e a miséria convivem de forma nem sempre harmoniosa. Meu incômodo era, talvez, injustificado: o que faz do pé descalço de um menino de classe média motivo de atenção e circunstancial preocupação em uma cidade com centenas de meninos descalços, brutalmente descalços? Por que, em uma cidade com dezenas de famílias morando nas ruas, o pé superficialmente descalço de Mateo chamava mais atenção do que outros pés cuja ausência de sapatos é a marca inocultável da barbárie que nega os mais elementares direitos humanos a milhares de indivíduos?
A pergunta me parecia trivial. No entanto, aos poucos, fui percebendo que aquele acontecimento continha algumas das questões centrais sobre as novas (e não tão novas) formas de exclusão social e educativa vividas hoje na América Latina. E esta sensação, longe de me tranqüilizar, perturbou-me ainda mais.
Procurei ordenar, em vão, minhas idéias.
A possibilidade de reconhecer ou perceber acontecimentos é uma forma de definir os limites sempre arbitrários entre o “normal” e o “anormal”, o aceito e o negado, o permitido e o proibido. É por isso que, enquanto é “anormal” que um menino de classe média ande descalço, é absolutamente “normal” que centenas de meninos de rua andem sem sapatos, perambulando pelas ruas de Copacabana pedindo esmolas.
A “anormalidade” torna os acontecimentos visíveis, ao mesmo tempo em que a “normalidade” costuma ter a capacidade de ocultá-los. O “normal” se torna cotidiano. E a visibilidade do cotidiano se desvanece (insensível e indiferente) como produto de sua tendencial naturalização.
Em nossas sociedades fragmentadas, os efeitos da concentração de riquezas e a ampliação de misérias, diluem-se diante da percepção cotidiana, não somente como conseqüência da frivolidade discursiva dos meios de comunicação de massas (com sua inesgotável capacidade de banalizar o que é importante e sacralizar o que é trivial), mas também pela própria força adquirida por tudo aquilo que se torna cotidiano; ou seja, “normal”.
Para dizer sem muitos rodeios, o que pretendo afirmar é que, hoje, em nossas sociedades dualizadas, a exclusão é invisível aos nossos olhos. Certamente, a invisibilidade é a marca mais visível nos processos de exclusão neste milênio que começa. A exclusão e seus efeitos estão aí. São evidencias cruéis e brutais mostradas nas esquinas, comentadas pelos jornais, exibidas nas telas. Entretanto, a exclusão parece ter perdido a capacidade de produzir espanto e indignação em boa parte da sociedade. Nos “outros” e em “nós outros”.
A seletividade do olhar cotidiano é implacável: dois pés descalços não são dois pés descalços. Um é um pé que perdeu o sapato. O outro é um pé que, simplesmente, não existe. Nunca existiu nem existirá. Um pé é o pé de uma criança. O outro é o pé de ninguém.
A exclusão se normaliza e, quando isso acontece, acaba se naturalizando. Deixa de ser um “problema” para ser apenas um “dado”. Um dado que, em sua trivialidade, faz com que nos acostumemos com sua presença. Dado que produz uma indignação tão efêmera quanto a recordação da estatística que informa a porcentagem de indivíduos que vivem abaixo da “linha de pobreza”. [No Brasil, hoje, quase um terço da população, cerca de 50 milhões de pessoas, vive na indigência, tem uma renda mensal inferior a R$ 80 e não consome o mínimo de calorias diárias recomendadas pela Organização Mundial de Saúde. Recentes estudos da Cepal (2000) demonstram que, na América Latina, existem 220 milhões de pobres, mais da metade deles são meninos, meninas e jovens. Pior ainda: mais da metade do total de meninos, meninas e jovens da região são pobres. De tal forma que, ter menos de 12 anos e não ser pobre, na América Latina, é uma questão de sorte: quase 60% da população nesse grupo de idade é pobre. O mapa da pobreza latino-americana contrasta com uma brutal concentração da riqueza, que faz desta a região mais injusta do planeta... Dados com os quais quase ninguém se lembra. Dados que indignam a todos, mas que rapidamente se desvanecem pela permanência daqueles que cotidianamente os tornam visíveis].
Em nossas sociedades fragmentadas, os excluídos devem se acostumar à exclusão. Os não excluídos, também. Assim, a exclusão desaparece no silêncio dos que a sofrem e no dos que a ignoram... Ou a temem. De certa forma, devemos ao medo o mérito de lembrarmos diariamente da existência da exclusão. O medo dos efeitos da pobreza, da marginalidade. O medo dos efeitos produzidos pela fome, pelo desespero ou, simplesmente, pelo desencanto.
A seletividade do olhar temeroso é implacável: dois pés descalços não são dois pés descalços. Um é o pé de um menino. O outro, o é de uma ameaça. (O olhar inseguro é branco. O pé de ninguém, o que ameaça, é negro. Branco: qualidade do visível. Negro: qualidade do invisível).
Entretanto, o medo não nos faz “ver” a exclusão. O medo nos leva a temê-la. E o temor é sempre, de uma forma ou de outra, aliado do esquecimento, do silêncio. O medo – aqui no Sul – é, quase sempre, um subproduto da violência. Uma violência cuja vocação é ocultar-se, tornar-se invisível aos olhos dos que a sofrem, ou apresentar-se de forma edulcorada nos discursos das elites que a produzem (Pinheiro, 1998).
A seletividade do olhar desmemoriado é implacável: dois pés descalços não são dois pés descalços, no Rio de Janeiro. Um é o pé de um menino. O outro, é um obstáculo”.

Texto retirado do livro
EDUCAR NA ESPERANÇA EM TEMPOS DE DESENCANTO,
de Pablo Gentili e Chico Alencar

2 comentários:

Cleberson Eduardo da Costa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Cleberson Eduardo da Costa disse...

Pablo Gentili foi meu Prof. na UERJ/PROPED (aluno especial) e participei com ele de grupos de estudos relativos aos processos de exclusão educacional no Brasil e na América Latina. Aqui vai vai um pequeno comentário dessa problemática sob o ponto de vista do caráter ideológico da escola no alvorecer do séc. XXI.

Livro: CATÁSTROFE NA ESCOLA: A negação consentida dos direitos à humanização e à emancipação intelectual.


A obsolescência programada, baluarte da globalização e um dos principais fundamentos do mundo pós-moderno capitalista, trouxe para a sociedade planetária problemas que ela não soube e/ou não sabe resolver.

Problemas estes relacionados não somente às questões humanas, sociais e econômicas, frente ao individualismo do capital, mas também e, sobretudo, problemas ambientais, do mundo físico, frente à mercantilização de todas as coisas, materiais e imateriais, na busca antiética pelo lucro certo e/ou a qualquer preço.

Nesse cenário de catástrofes humanas, sociais e ambientais, surge e apresenta-se outra catástrofe: a catástrofe da escola.
Ou seja, num tempo onde impera a ética do individualismo e da meritocracia, como sendo, de fato, sinônimos das justificativas da exclusão e da inclusão, a escola se torna ideológica, na medida em que é especificamente concebida pelo Estado capitalista como o lugar onde os preceitos de humanização e emancipação intelectual são abortados, dinamitados, e, numa outra via, sistematizado o corolário capitalista como seu conteúdo ético metodológico-pedagógico.

A globalização, ao mesmo tempo, que trouxe a possibilidade de mostrar os diferentes e\ou as diferenças culturais planetárias, nos seus diferentes povos, por outro lado, associada às políticas capitalistas de expansão de mercados consumidores, paradoxalmente potencializou o desenvolvimento do individualismo, do consumismo, do hedonismo anti-virtuoso, do narcisismo, do genocídio, do xenofobismo e dos nacionalismos, levando a sociedade global para longe da capacidade de coexistir, de tolerar, de respeitar as diferenças.
Nesse sentido, a desumanização imperou e tem imperadado como conteúdo ético capitalista em escala global, planetária, sob a insígnia de repúblicas democráticas capitalistas, comparadas à democracia Ateniense, do antigo mundo Grego, onde aproximadamente noventa por cento dos habitantes não eram considerados cidadãos plenos e, portanto, não participavam dos rumos, das decisões da polis, por questões nacionalistas, de autoctonia, anti-cosmopolitas, visando a autopreservação.
A volta a esse tipo de nacionalismo xenofóbico, exacerbado e centrado em si, de “glória do eu mesmo” e de “desprestígio do outro”, por meio dessa globalização capitalista, entrou pelas veias dos diferentes povos, como uma espécie de chip da ignorância contra os diferentes e as diferenças, contra os estrangeiros, contra os ditos estranhos, contra os ditos inimigos potenciais, contra os ditos não “Eus”, não iguais que, pela globalização, passaram a ter que enxergar, sistematizando-se a sociedade dos mesmos, transformando, pela coação, pela educação ou pela coerção, o outro no mesmo.

Princípios de sustentabilidade, biodiversidade, educação ambiental, tolerância e respeito às diferenças passaram então a ser perseguidos como ideias biófilo por uma pequena parcela social e, por outro, por parte dos capitalistas, tentando mascarar suas reais responsabilidades, jogando a solução desses problemas para a própria sociedade, sabendo-se que a mesma não tem sozinha condições de resolvê-los.

Redefinições no caráter da educação, no papel da escola e no que diz respeito à função social do professor, passaram a soar como um imperativo, na medida em que a condição humana desumanizada passou a ser percebida como um produto da sociedade do capital, demonstrando a impotência da escola no enfrentamento desse problema.

Ou seja, a escola, hoje, nas sociedades do capital, é catastrófica porque reflete e reproduz essa sociedade perversa, corrompendo, impedindo o indivíduo que nela entra de educar-se de fato, de humanizar-se e de emancipar-se intelectualmente,

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